quarta-feira, junho 20, 2007

As minhas Flores sentidas


O concelho de Santa Cruz, um dos dois da ilha das Flores (com as Lages), não quer perder mais população. No meio do Atlântico, no gigante mar dos Açores, as Flores são o derradeiro pedaço de terra europeu a caminho da América. O mais ocidental. Pior, em matéria de isolamento, só mesmo a pequenota ilha do Corvo, ali ao lado mas menos setentrional. Agora, na tentativa, não de atrair, mas de manter mais gente, o governo regional e o município decidiram lançar um programa de habitação de custos controlados. E eu leio a pequena breve de hoje, perdida nas páginas do DN, e fico a pensar nas minhas memórias das Flores, um dos locais mais fascinantes por onde passei onde nas noites escuras de Verão se sente mais o peso do céu.

É ali que vive o meu amigo Saúl, o padeiro das Flores, que, quis o acaso (será?), encontrei quando me arrastava pela Praça das Lajes, tentando digerir a sopa do Espírito Santo, que nunca tinha provado. Separados por quatro anos, eu e ele fazemos anos no mesmo dia. E soubemo-lo ali no meio do jardim das Lajes, debaixo do calor sufocante de Agosto. Um calor tão húmido como nunca vi igual. Ficámos amigos. E tenho a sorte de ser a mim que o Saul recorre quando o posso ajudar a entrecurtar a distância para a sua ilha. Telefonou-me há dias pedindo-me para orientar em Lisboa um familiar a quem foi diagnosticada uma doença grave. E eu fiquei grata por o poder ajudar. Também eu, preocupada, lhe telefono para o avisar do mau tempo. Fi-lo aquando da última ameaça de furacão e o Saúl riu-se. "É um ventinho. A gente já está habituada".

Lembrei-me ainda de termos trepado as falésias de Ponta Delgada (não confundir com a capital de S. Miguel), percurso de uma beleza infinita que termina naquele que deve ser o farol habitado mais isolado do Mundo.

Mesmo para quem faz das palavras a sua ferramenta de trabalho, não é fácil descrever as emoções, que sinto e senti, quando estive na ilha das Flores. Poderia falar de um dos mestres do porto que nos deu boleia de zebro para o Corvo, partilhando connosco um dos espectáculos mais intensos de proximidade com centenas de golfinhos que nos fizeram guarda de honra. Poderia falar do misto de claustrofobia e de fascínio, quando o mestre Zé deu meia volta ao zebro e entrou pelas grutas marítimas da ilha, mostrando-nos, ali, como a terra estava esventrada pela erosão do mar. Podia ainda falar da sensação de pequenez que então senti, muito diferente da decorrente do meu metro e meio de gente.

As minhas memórias das Flores passam pelos corredores de hortênsias, pela intensidade dos cheiros, do enxofre, do peixe fresco, das lapas. E passam ainda pelas palavras sentidas de Paulo Valadão, o único deputado regional comunista eleito pelas Flores, no rescaldo do acidente aéreo do ATP da Sata, na ilha de S. Jorge, em 25 de Novembro de 1999: "É uma tragédia imensa para uma ilha tão pequena". Emocionado, Valadão traduzia o sentir de uma população de dois mil residentes, perante a morte de 50 dos seus. E percebi tão bem o que ele queria dizer.

6 comentários:

Pisca disse...

"nas flores cumprimenta o povo
encosta-se ao Corvo,
e segue com a aragem.
O mar não tem marés a medir"

Tenho mesmo que ir ao Açores

Obrigado pelas palavras

ps:do tempo em que o FT escrevia alguma coisa em condições

Coca disse...

"Na Graciosa dá beijos acalma os desejos e segue para o Pico.
Aí conversa primeiro com um baleeiro dos dias de mel,
engrossa-se a meio canal sorri para o Faial, que dá gosto vê-lo
S. Jorge pára nas Velas e faz um coral com nove cagarros (...)"
Caro Pisca, olhe que o Fernando Tordo tem um núcleo duro de apreciadores por estes lados. Que boa a recordação do açoriano.

Pisca disse...

Tá visto andámos a ouvir as mesmas palavras das canções.

No Anticiclone (fabuloso), uma canção linda que começa:

"Aparece um que me pergunta pela vida....."

coisas que se ouvem e ficam, tendência minha para estes registos, e agora já é tarde para mudar

Coca disse...

Pois andamos Pisca e não sei se é tarde ou cedo, mas são boas estas partilhas.

Ninas disse...

Ainda não conheço as Flores ...

Grande falha ...

Coca disse...

Fico feliz por saber que ainda há coisas que não conhece, Ninas.